sábado, 17 de julho de 2010

CARTA DO ESTADO À NAÇÃO


Portugueses

Como bem sabeis, e embora o termo tenha caído em desuso, vós representais a Pátria, a Nação.
Eu, administrado por um Governo e um Parlamento, sou suposto ser governado, em vossa representação, por cidadãos por vós eleitos, democraticamente.
Nem sempre assim foi, como bem sabeis, mas o objectivo desta carta não é falar da minha história, que é também a vossa, embora mal não vos fizesse que a tentásseis conhecer um pouco melhor, para melhor entenderdes as causas dos problemas que nos afligem. Mas isso são outros vinte cinco tostões e o objectivo desta carta é falar-vos do debate que ocorreu esta semana, no Parlamento, sobre o estado em que me encontro, ou melhor, em que nos encontramos...
Sabeis todos que as coisas não têm estado nada fáceis, se é que alguma vez o foram, em matéria de economia e finanças, sobretudo a partir da crise internacional de 2008, cujo impacto nos países da União Europeia veio agravar, ainda mais, os problemas com que nos debatemos e evidenciar as fragilidades do sistema em que se tem baseado o crescimento do País.
É claro que esta coisa das crises não é uma novidade, nem para mim, nem para muitos de entre vós e como dizia um dos mais ilustres portugueses, Eça de Queiroz, em 1890, num texto sobre os "Novos Factores da Política Portuguesa", "É a nossa pobreza geral que complica singularmente a nossa crise política. Em casa onde não há pão todos ralham e todos têm razão - porque é deste modo que o provérbio deve ser entre nós emendado.".
Desde há muitos que vos habituastes a gastar acima das vossas possibilidades e se é verdade que, nas últimas décadas, se registou uma significativa melhoria do vosso nível de vida, não é menos verdade que isso foi conseguido à custa de crescente endividamento das vossas famílias e de um acentuado crescimento do consumo, em detrimento da poupança.
É claro que eu também ajudei, como me competia, criando postos de trabalho, pagando mais e melhores salários a todos os que para mim trabalham, criando um serviço nacional de saúde gratuito, alargando o regime de segurança social e de reforma a um maior número de cidadãos, instituindo o salário mínimo, o rendimento mínimo garantido, o rendimento social de inserção, criando mais escolas e universidades, construindo estradas, barragens, pontes, etc., etc., etc.,...
Tal como vós, endividei-me excessivamente, apesar de ter contado com a ajuda de importantes verbas dos fundos comunitários, a que eu, tal como vós, nem sempre dei a melhor utilização, os quais contribuíram, durante muito tempo, para nos dar a ilusão de que poderíamos continuar a viver acima das nossas possibilidades.
Sucede que a crise financeira de 2008 veio relembrar-nos que a realidade não se compadece com devaneios e não nos resta alternativa senão reconhecermos que não podemos continuar a gastar acima dos nossos recursos e que teremos de fazer sacrifícios para reduzirmos o nosso elevadíssimo nível de endividamento. Teremos, disse bem, porque eu, Estado, terei de reduzir, substancialmente, os meus gastos, tal como vós tereis de reduzir os vossos consumos e contribuir para a redução da minha dívida, pagando, com os vossos impostos, mais pelo conjunto de bens e serviços que coloco à vossa disposição.
E não vos deixeis iludir pelo debate, no Parlamento, esta semana, ou pelos discursos, mais ou menos elaborados, dos políticos que me servem, pois a todos cabe uma enorme responsabilidade no estado de penúria em que me encontro. Todos, repito, para que não restem dúvidas. Por acção ou omissão.
Neste processo de endividamento excessivo em que nos encontramos, não existem imaculados, no sector público como no privado.
A mim, engordaram-me, todos os governos, sem excepção, não cuidando de verificar se eu tinha condições para poder sustentar tantos encargos. A vós, induziram-vos ao consumo e deram-vos a ideia de que este estado de coisas poderia continuar, eternamente.
Como era de esperar, os nossos financiadores estão a querer cobrar a factura e a União Europeia, comandada pela arrogante Alemanha, quer que ela seja paga a um ritmo que não é compatível com paninhos quentes, antes exigindo uma terapia de choque.
Portugueses,
Esta carta que vos escrevo não tem outro objectivo que não o de vos relembrar que não chegámos a este estado de coisas por obra de um governo, de uma maioria ou de um presidente. Todos foram responsáveis, sem excepção, utilizando-me para a sua política eleitoral e para a defesa de interesses, mais ou menos inconfessáveis, de diferentes grupos. Em maior ou menor grau, todos o fizeram.
E é por isso que, como Estado, não mais assistirei a debates sobre a Nação, enquanto não houver maior decência no modo de abordar este tema.
O actual primeiro-ministro tem cometido erros de diversa natureza, mas parece-me inegável o seu desejo de me reformar, e se mais não fez, muito se deve à oposição de muitos dos que agora clamam: presidência, partidos, sindicatos, organizações patronais, etc., como se não lhes coubessem responsabilidades no processo.
Tendes vós um ditado segundo o qual "mais vale cair em graça do que ser engraçado" e o primeiro-ministro, a quem, apesar dos erros cometidos, não se pode negar um claro propósito reformista, como pode ser atestado por médicos, professores, magistrados, funcionários públicos, pensionistas, etc., de há muito que deixou de estar nas boas graças de vários dos sectores mais influentes do País, incluindo a comunicação social...
E termino voltando a citar Eça de Queiroz e o texto que acima mencionei, para demonstrar que a situação que estamos a viver não é nova, nem irresolúvel, assim haja vontade política de colocar os interesses de todos acima da querela política e não nos falte a arte e o engenho:
"o interesse de quem tem o poder (...) está todo e unicamente em acertar. Senão já por dever de consciência e de patriotismo, ao menos por egoísmo, por vantagem própria e individual, por ambição do mesmo poder, o esforço constante de um governo deve ser acertar. Entre nós têm-se visto governos que parecem absurdamente apostados em errar, errar de propósito, errar sempre, errar em tudo, errar por frio sistema. Há períodos em que um erro mais ou um erro menos realmente pouco conta. No momento histórico a que chegamos, porém, cada erro, por mais pequeno, é um novo golpe de camartelo friamente atirado ao edifício das instituições;".
E como alguém disse, desculpem qualquer coisinha...
Receba, a Nação e cada um dos portugueses, um forte abraço de profunda e sincera amizade, com um optimismo responsável e a certeza de que eu e vós, Nação, haveremos de sobreviver a mais esta crise, com maior ou menor dificuldade, mesmo que alguns teimem em colocar os seus interesses acima dos daqueles que se comprometeram a servir. Sempre assim foi e sempre assim será.

Este que vos serve e se subscreve,

O Estado

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