terça-feira, 29 de junho de 2010

AINDA A FIFA E A VERDADE DESPORTIVA



Pela actualidade e importância do tema, não resisto a reproduzir um artigo, que considero brilhante, publicado pelo jornalista brasileiro José Antunes de Souza, na página da Universidade Do Futebol, na internet.

A opaca sociedade do futebol

Pede-se aos órgãos dirigentes um sentido de responsabilidade histórica ao futebol, substituindo a teimosa percepção insular da realidade deste novo mundo

José Antunes de Sousa*

Em Portugal, um jornalista lançou uma iniciativa de uma petição pública a favor da introdução no futebol do contributo das novas tecnologias, como meios supletivos de prova, visando a salvaguarda da verdade desportiva, petição que foi já entregue, com assinalável mediatismo, na Assembleia da República.
Embora seja duvidoso este pretendido casamento entre a verdade desportiva e as instâncias políticas, uma vez que os órgãos supremos do Futebol e os órgãos do Estado, justamente porque os anima mais que tudo o desígnio da conservação do poder, manifestam indisfarçável desconforto face a um qualquer escrutínio – popular ou electrónico – fica, mesmo assim, o sinal claro de um significativo levantamento nacional contra a obstinação conservadora da Fifa.
Ainda há dias, na sequência de uma importante reunião em Zurique dos membros do Internacional Board da Fifa, o secretário-geral deste organismo, Jerome Valcke, declarava, do alto de uma anacrônica sobranceria: “a tecnologia não deve entrar no jogo” (porque é, se calhar, muito o que está em jogo, digo eu!), acrescentando de seguida, com comovente convicção, que o futebol deve ser preservado como “um jogo humano”. Nem mais.
Mas é precisamente porque, como Terêncio, “nada do que é humano me é indiferente”, que acuso esta contundência fifeira de inumanidade (mais que desumanidade), porque nada nega mais flagrantemente essa pretensa humanidade do que a injustiça – ainda por cima praticada pelos próprios homens.
Vejamos como é tortuoso o desígnio da Fifa e hipócrita a sua teimosia: o que torna o espectáculo futebolístico um evento de inigualável impressividade junto de multidões e de massas não é o erro grosseiro do árbitro validando o gol de uma bola empurrada com a mão ou não validando um outro que poderia ser decisivo de uma bola que transpôs, mais de um metro, a linha de baliza – não. Isso o que faz é incendiar gratuita e desnecessariamente os ânimos de quem assim se rebela contra injustiça tão impunemente contra eles praticada. Isto é, ao contrário do que afirma, em tom piedoso o Senhor Valcke, tão flagrante e inqualificável atitude o que faz exactamente é desumanizar o futebol, como desumanizantes foram até hoje todas as prepotências e ditaduras da história.
A transbordante emoção que electriza as gentes do futebol provém do padrão gestual do próprio jogo e da enorme margem de imprevisibilidade, acaso e capricho que o caracteriza – e esta, além, de suficiente, é a única fonte genuína e legítima de emoção a que as pessoas boamente se dispõem e entregam.
Perante esta evidência, suspeita se nos torna esta obstinada resistência da Fifa ao papel adjuntivo e subsidiário das novas tecnologias no jogo de futebol. Se, com efeito, tão veementemente resiste ao que parece ser um bem então talvez isso seja o sinal de que com essas tecnologias no futebol algo de muito importante poderá a Fifa perder. É, aliás, clássico: a resistência à mudança resulta sobretudo do medo de perder privilégios e poder. De fato, se as novas tecnologias o que visam é apenas uma maior garantia da verdade desportiva, o que será que de mais importante do que isso pode a Fifa vir a perder? Só se for um ínvio e secreto desígnio de a essa verdade desportiva poder condicionar ou manipular. É como se a componente judicial, numa espécie de corporativa aliança entre organismos dirigentes e árbitros de campo, quisessem guardar à viva força para si uma franja discricionária de poder.
É sabido que o futebol moderno, enquanto indústria poderosíssima, se impõe como subsistema do capitalismo. E bem sabemos também como o sistema capitalista se alimenta de uma racionalidade que visa a conquista, a dominação, o poder. À moderna razão, enquanto expressão de poder, convém alimentar-se das emoções que massificam e uniformizam comportamentos susceptíveis de uma fácil exploração, mas reservando para si o espaço arbitrário de decisão – que é a forma de servir uma estratégia de auto-perpetuação. Ora, é esta razão, que impõe uma razão que se não pode contestar, que, visando o poder, se sobrepõe, por via autocrática, à genuína emoção e ludicidade que caracterizam o código genético deste fantástico jogo que é o futebol. Porque a emoção ou é endógena e, nessa medida, o futebol é uma atividade realmente humana, ou ela é exógena, provocada e induzida por factores estranhos ao jogo propriamente dito e, nesse caso, essa emoção é revolta, raiva, ressentimento – tudo fatores que ajudam a destruir o que supostamente se quer acautelar, o futebol.
Eis o que, na sequência da Copa do Mundo de 1990, escrevia a socióloga Zillah Branco: “então será o descontrolo total das populações que são condenadas a meros espectadores de decisões arbitrárias. Que os poderosos, inclusive a Fifa, assumam as suas responsabilidades, porque não é com polícia que se faz justiça social quando o abuso de poder é lei consagrada” (Jornal A Bola,5 de Agosto de 1990). E um pouco mais acima, em inspirado desabafo que espelha, com fidelidade, a reação do torcedor anônimo, escrevia aquela cientista social: “o outro aspecto elucidativo do uso do poder é a transferência da sacralização das regras do jogo para a figura do árbitro. Em campo ele é todo-poderoso, não há autoridade que esteja acima dele, nem de Presidentes, nem de Reis, nem de Deus. Os olhos e o coração de milhões, talvez de biliões de pessoas, estão voltados para ele à espera da sua sentença. Mas o que mais impressiona é o exercício ditatorial do poder que lhe é permitido. O jogador não pode discordar, não pode manifestar a sua dúvida. Ele levanta o cartão amarelo ou vermelho com a mesma soberania de grande imperador que condena inapelavelmente à morte quem ousou contrariá-lo” (Ibidem).
Parece haver, pois, como que uma organização piramidal, feita de uma tácita corporação em torno de um poder absoluto. A Fifa, para preservar esse poder, que se quer incontestável, vê no árbitro no terreno de jogo um seu aliado, quando não um seu comissário – o árbitro como a iconização ao vivo desse mesmo poder.
Daí ainda a lógica discricionária da avaliação e promoção dos árbitros que, assim, mantêm com a estrutura que os gera e gere uma relação dócil e servil, pois é da natureza de um qualquer chefe nomeado reverenciar quem o designa e espezinhar quem o serve (neste caso, os jogadores e demais intervenientes no jogo). É o que, em psicologia social e das organizações, se costuma designar por “efeito ciclista”: salamaleques para cima com a cabeça encurvada e pisadelas com os pés nos pedais para baixo.
Se quer a Fifa que seja humano o futebol, por que razão não acolhe no seu seio, por analogia com o sistema judiciário, a possibilidade de uma instância garantística que, com maior fiabilidade, favoreça o acerto na decisão? Quem se pode sentir diminuído com isso? O que será mais importante, o respeito pelo esforço dos atletas ou o ego envaidecido de um senhor que julga ter na ponta do apito a força suficiente para provocar um tornado global? A que aproveita, pois, esta opacidade sistêmica?
É que o poder supletivo de confirmação e apelo que os meios tecnológicos inegavelmente representariam instituir-se-ia em rival do atual poder das instâncias deliberativas da Fifa e da Uefa cuja glória de detentoras da última palavra se toldaria e, de alguma maneira, se dissiparia, pelo menos, em boa parte. Com a prova na hora da justeza da decisão tomada, grande parte de conflitos e suspeições seriam atalhados com evidentes benefícios para todos os intervenientes – exceto para os inefáveis juízes de Nyon ou Zurique que quase ficariam à beira do desemprego.
Que é preciso evitar que o futebol seja descaracterizado? Sem dúvida. Mas isso consegue-se evitando a banalização que adviria de um recurso por tudo e por nada aos novos meios tecnológicos. Que, mesmo assim, esse processo implica interrupções de jogo? Sim, nada, porém, que se compare às atuais paragens provocadas por zangas entre jogadores, lesões simuladas e discussões com a equipa de arbitragem. De resto, parar para corrigir e retificar é incomparavelmente mais humano e desportivo (“fair-play”) do que, depois de uma demorada sarrafusca entre jogadores e árbitros, se persistir num erro de bandeira que subvertesse irreparavelmente a verdade do desfecho do jogo.
Ao contrário do que alguns possam pensar, esta tentativa obstinada de manter a todo o custo uma zona límbica e baça de auto-empoderamento oligárquico, em vez de preservar o futebol da ameaça degenerativa, aumenta o “ruído” no interior do sistema, agravando e acelerando perigosamente a sua entropia.
Dir-se-ia mesmo que esta anacrônica oclusão aos ventos diáfanos de uma maior justiça desportiva está a entupir os canais da auto-regeneração da estrutura do futebol, ameaçando-a de cancro que a pode destruir de vez.
O que se pede neste momento aos organismos que superintendem o fenômeno do futebol é um sentido de responsabilidade histórica, ou seja, a sensata leitura dos sinais dos tempos, em vez desta teimosa percepção insular da realidade deste nosso novo mundo.


*José Antunes de Souza é jornalista e autor do livro "Desporto em flagrante"

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