terça-feira, 16 de março de 2010

O CINEMA...




Gosto muito de cinema, mas não percebo nada. Sou um perfeito desastre.
Com excepção de um ou outro grande clássico, raramente me lembro do nome dos filmes que vi, assim como tenho uma enorme tendência para baralhar os nomes dos actores, dos poucos que conheço, mesmo os mais famosos. E saber quem participou ou dirigiu os filmes, isso então nem pensar.
O que me deixa mais tranquilo é saber que esta falta de memória não se deve à idade, já que sempre fui assim desde jovem, apesar de achar engraçado ver a desenvoltura com que alguns amigos meus falavam dos filmes e dos principais intervenientes.
Com a idade, passei a detestar filmes violentos ou que me deixem incomodado, pelo que as minhas idas ao cinema passaram a constituir exercícios de boa disposição.
Mas gosto de ler algumas crónicas sobre cinema e de saber o que pensam os especialistas, apesar de tudo o que referi anteriormente.
É neste contexto que me deparei com a crónica de Arnaldo Jabor, caricaturado acima, publicada hoje no jornal Estado de São Paulo, sobre o que deve ser o cinema, que me tocou muito e por isso aqui passo a reproduzir, esperando que possam gostar tanto quanto eu.

Cinema tem de exaltar a vida

Em 1990, filmei Amor à Primeira Vista, uma coprodução franco-italiana para a TV que nem passou aqui. Depois, parei ? de saco cheio de tanta ansiedade e frustração, os dois sentimentos básicos do cineasta.
As pessoas pensam que filmar é um piquenique. De vez em quando, algum "desconhecido íntimo" me perguntava: "Como é? Quando vai filmar de novo?" Eu respondia: "Sei lá..." E o sujeito continuava: "Adorei aquele seu filme, o Bye Bye Brasil!.... "Não é meu" , resmungava. "Ahh... Cineasta é tudo igual... Aliás, vocês levam um vidão, hein?" E me cochichava, com sórdida cumplicidade: "Vocês comem atrizes às pampas, hein?" E eu, como um "Casanova" discreto: "Nem tanto... nem tanto..." ? e fugia, sob a inveja do cara.
Passei 25 anos olhando o mundo através de ângulos de cinema: "Aquela mulher com uma lente 75 mm daria um close lindo, aquele casal correndo da chuva seria um travelling legal..."
Agora, matei a fome, pois não aguentava mais ficar apenas um comentarista vendo o horror do mundo, as vergonhas nacionais. Adoro o vasto mundo do jornalismo e TV. Mas, só política envenena a alma. Digo sempre: "É feito trabalhar no Instituto Butantã... um dia a cobra te morde..."
Agora, 20 anos depois, estou acabando A Suprema Felicidade, um filme que se passa nos anos dourados do Rio, entre 1950 e 60. E não é para "conscientizar" ninguém.
Na época do Cinema Novo, vivíamos uma arte que "salvaria" o século, "mudaria cabeças"; buscávamos o chamado "específico fílmico", utopia de imagem a ser atingida.
Neste filme só falo das coisas que conheci e vivi. Como dizia o Fellini: "A única objetividade que conheço é a subjetividade." Filmei por amor à arte, essa coisa meio antiga, neste mundo atual onde os filmes só têm cenas de três segundos, delirantes maneiras de você ver muito para nada ver. O antigo "autor" ou "diretor" virou um guarda de trânsito para atores: "Vai por ali, vem por aqui..."
O filme que fiz não quer provar nada. Claro que gostaria que fosse uma defesa quase "ecológica" contra a cultura de massas. Mas, quem sou eu, para desejar tanto?
No entanto, há sinais de que talvez comece uma renascença artística se parindo do mundo digital. Por isso, amei o Avatar ? a primeira superprodução em que a tecnologia ficou a serviço da poesia. Acho que Alice, do Tim Burton, também vai ser assim. Avatar é um filme de autor. Existe ali um grande amor ao cinema, como no último Tarantino, como nos anos 60, quando fazer cinema era paixão.
Lembro-me da última vez em que vi o cineasta francês Louis Malle, no Rio. Falamos dessa paixão, da fumaça dos cigarros Gauloises, dos paletós surrados dos cinéfilos de Paris, dos papos-cabeça da nouvelle vague, da magia do preto e branco, da aura sagrada que os cinemas de "shopping centers" exterminaram, entre pipocas e cachorros-quentes, esse cinema que hoje é uma extensão das praças de alimentação.
Meses depois, Malle morria de câncer, como o Truffaut.
O cinema sempre buscou as massas; não vivia em guetos como a poesia ou pintura, mas tinha uma fome de "arte", visível mesmo nos filmes "comerciais", como Cantando na Chuva.
Sem esse amor, cinema é um videogame em que somos as peças. Por isso, me lembro também de Humberto Mauro, o grande cineasta-fundador dos anos 20 e 30 que criou uma definição famosa sobre a antiga Sétima Arte: "Cinema é cachoeira..." Por que ele dizia isso? Já contei, mas repito.
Quando ele fazia seus filmes em Cataguazes e na Cinédia do Rio, todo amigo que ele encontrava na rua dizia: "Humberto, meu querido, você precisa ir lá no meu sítio filmar a minha cachoeira. Você precisa ver que cachoeira!" E o Humberto Mauro ficava intrigado: "Por que sempre querem que eu filme cachoeiras?"
Um dia, ele deu uma palestra num cineclube e um jovem lançou-lhe a pergunta essencial: "Seu Mauro... qual é a alma do cinema?" Aí, o velho cineasta cunhou a definição eterna: "Cinema, meu filho, é... cachoeira!"
Tentei filmar assim: o fluxo da afetividade, da tentativa de alegria, do desejo de felicidade. Tentei um filme de aventuras emocionais. Arte tem de ser exaltação da vida. E hoje tudo está tão falso, tão virtual que imagino que alguma personagem poderia sair da tela, como na Rosa Púrpura do Cairo, e perguntar: "Hei!... Vocês aí ? afinal, o que é (ou era) a realidade?" E nós responderíamos: "Realidade" é esta coisa aqui fora e dentro de nosso corpo, fluindo sem parar, é esse rio de signos, essa ilusão dos sentidos, esse mistério que teimamos em deslindar inutilmente, pois fazemos parte dele. "Realidade" é esta coisa sempre além da ciência, sempre além do sentido, do tempo e do espaço, inatingível, pois estamos todos boiando num infinito caldo de cultura, onde "parece" que boiamos; apenas "parece", pois somos também o caldo onde boiamos. A mosca e a sopa são a mesma coisa.
Quanto mais se fazem descobertas, mais fundo é o túnel do mistério. Quanto mais aberta for a máquina do mundo, mais vazia e indecifrável.
Por isso, a melhor metáfora para o cinema é a cachoeira mesmo ? uma água que não para de fluir. Não há uma realidade que finalmente se detenha e se configure; buscá-la, tanto no cinema como na filosofia, é fracasso certo. Não há arte ou filme que dê conta do implacável fluir dessa cachoeira que se chama "vida". O drama dos séculos tem sido a tentativa de se alcançar uma resposta estática.
A própria ideia de "paraíso" na Terra esconde (ou comprova) o desejo de parar o espaço e o tempo. O "paraíso" seria um lugar onde não houvesse a morte ? nem cinema. Não há "cinema paraíso" (por isso, aquele filme italiano é tão ruim).
Somos uma cachoeira contemplando a outra. Nossas ações têm esse fracasso fundamental: jamais veremos um fim ou um início.
Cinema e vida são cachoeiras, como descobriu Humberto Mauro.

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