O texto que transcrevo, abaixo, publicado no semanário Expresso, é um convite á reflexão, num momento em que vai começar a discutir-se o famoso PEC, aprovado ontem pelo governo.
Miguel Sousa Tavares (www.expresso.pt)
0:00 Quinta-feira, 25 de Fev de 2010
Faz falta um sopro de lucidez que varra este país de cima a baixo e nos devolva o bom senso e a esperança.
Faz-nos falta meter na cabeça, nem que seja à martelada, que Portugal enfrenta problemas e perigos de uma dimensão tamanha que perder tempo a lavar roupa suja e a discutir lingerie enquanto os problemas se acumulam e agravam sem solução, é mais do que diletância, é verdadeiro suicídio.
Faz-nos falta que cada um perceba qual é o seu lugar e a sua função e não se envolva em tentações e confusões onde todos se perdem, sem honra nem proveito público. Ao Governo cabe governar, e não imiscuir-se na vida das redacções ou nas jogadas do poder económico. Aos juízes cabe acusar e julgar de acordo com a lei e a sua consciência, e não de acordo com as suas ideias políticas ou os seus interesses corporativos. Aos jornalistas cabe informar de acordo com os factos e a verdade investigada, mas não cabe a tarefa de derrubar governos nem promover julgamentos públicos em substituição dos tribunais. Às empresas públicas ou participadas pelo Estado, gerindo bens e serviços de necessidade pública, cabe apenas o papel de servir os utentes nas melhores condições, e não o envolvimento nos grandes negócios do regime ou em jogadas menores de baixa política ao serviço do poder do momento.
Tudo isto devia ser óbvio por si mesmo e por aí devíamos começar de novo.
Parece-me óbvio que os administradores do Estado nomeados para uma PT, por mais que a sua nomeação dependa do partido que lá os pôs, não podem estar ao seu serviço e chegar ao cúmulo de querer envolver dinheiro, que em parte vem dos contribuintes, para financiar manobras de controlo de um jornal ou de uma televisão ou negócios de favor com grupos económicos benquistos do poder.
Parece-me óbvio que não é admissível que um governo congemine, por pressões políticas directas ou por pressões económicas indirectas, o afastamento dos jornalistas de que não gosta.
Mas parece-me óbvio também, que, se o fizer ou tentar fazer, estaremos perante mais um dos fatais delitos que todos os governos têm tendência a cometer, e não perante um inverosímil 'crime de atentado ao Estado de Direito'. A menos que o Estado de Direito possa ser confundido com dois jornalistas incómodos.
E parece-me ainda óbvio que quem publica escutas telefónicas privadas, ordenadas apenas para efeitos de um inquérito judicial e desviadas do mesmo inquérito para as páginas de um jornal - e o faz justamente em nome do interesse público de denunciar o suposto crime de atentado ao Estado de Direito - não pode, depois, borrifar-se para o Estado de Direito e desobedecer a uma providência cautelar ordenada por um tribunal. A menos que por Estado de Direito não se entenda a obediência à lei e às decisões dos tribunais. Ou que se queira confundir uma providência cautelar com um acto de censura.
Li que quase todos os directores de jornais e revistas que aqui se publicam declararam ao "Diário de Notícias" que também eles publicariam as escutas divulgadas pelo "Sol", porque entendiam que o interesse público no seu conhecimento sobrelevava o direito, todavia garantido constitucionalmente, de inviolabilidade da correspondência particular e reserva da vida privada. Não consigo acompanhá-los, e fico, aliás, a pensar que, se assim for, o que a Constituição garante é letra morta. E com que legitimidade pode um director de jornal decidir que o direito que me assiste ao segredo das minhas conversas telefónicas é menos importante do que o interesse público (ou do público?) em conhecê-las? Atrevo-me até a pensar que, a prazo, é bem mais perigoso para a saúde do regime democrático deixar instalar a ideia de que toda a privacidade alheia é legitimamente violável em nome do interesse público do que deixar de conhecer todos os meandros políticos do 'Face Oculta'. Também a Constituição de 1933, do Estado Novo, continha um artigo 8º que garantia todos os direitos individuais - e, logo abaixo, um parágrafo onde se dizia que "leis especiais" regulariam o exercício desses direitos, em obediência ao interesse público. É que o direito à reserva da vida privada, por exemplo, é um conceito objectivo: todos sabemos o que significa. Mas o 'interesse público' é um conceito subjectivo, que varia conforme o regime e as circunstâncias, os hábitos, as modas e o interesse do público. E assim, defendendo esta tese, alguém me perguntava há dias, em tom de desafio: "mas tu não és jornalista?"
Sou: há mais de 30 anos. E, como todos os jornalistas, já fui várias vezes acusado e julgado por aquilo que disse ou escrevi. Mas apenas uma vez fui condenado - e não por autoria directa, mas sim na qualidade de director da publicação onde a ofensa terá sido cometida. E fui, aliás, condenado no Supremo, em circunstâncias e com fundamentos que, a meu ver, não honraram os juízes que assinaram a sentença condenatória. Mas, paciência, são ossos do ofício e não me queixo sequer do tempo, dinheiro e trabalho gasto a defender-me em vários casos onde nenhuma razão assistia aos queixosos - e assim foi decidido pelos tribunais. A única coisa de que me queixo é de uma lei processual que permite a qualquer um, sem qualquer fundamento válido, fazer sentar um jornalista no banco dos réus como criminoso, atrapalhar-lhe a vida, e depois perder o processo sem nenhuma outra consequência que não a de pagar as custas. Mas, de resto, quando me querem acusar, é fácil: não escrevo uma linha anónimo, não fujo às notificações, nunca falto ao julgamento nem promovo adiamentos e, sobretudo, não desato a gritar que me querem censurar ou que a liberdade de imprensa está em perigo porque a minha importantíssima pessoa foi incomodada. É a regra do jogo e todos os jogos têm regras. E também durmo de T-shirt, muitas vezes branca, e cujos dizeres variam: a que despi hoje de manhã dizia "ler é viver".
Talvez a Comissão de Ética da Assembleia da República pudesse fazer algumas destas perguntas aos 52 heróis e vilões que convocou para tentar descobrir se a liberdade de imprensa está em perigo em Portugal - e os quais se vão agatanhar uns aos outros sem dó nem piedade, sem pudor nem grandeza. Mas já sei que a conclusão inevitável seria a de que isso depende da perspectiva política de cada um, na conjuntura actual. O que seria lamentável.
Se não nos entendemos no essencial - o que é a liberdade, o que é a censura, o que são direitos absolutos e relativos, o que é o Estado de Direito, o que valem as decisões dos tribunais - dificilmente nos entenderemos no resto. E o resto são coisas factuais, que não dependem de opiniões ou ideias e que qualquer um sabe: são 563.000 desempregados, um Estado no limiar da insolvência e um país deserto de esperança.
Texto publicado na edição do Expresso de 20 de Fevereiro de 2010
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