O meu amigo José Ribeiro da Silva enviou-me, através de correio electrónico, o texto que passo a reproduzir, escrito por Eduardo Carvalho Campos, que não tenho o prazer de conhecer, nem faço ideia quem seja.
Na mensagem que me enviou, o Ribeiro da Silva não fazia qualquer comentário, tal como eu aqui não farei, talvez para que pudesse concentrar-me na leitura do texto e reflectir sobre a bondade do que está escrito...
Faço apenas notar que, no texto que me foi enviado não consta o ponto5, por omissão ou erro de numeração, pelo que o reproduzo tal como o recebi.
Escutai bem
Cheguei a Portugal no dia 25 de Janeiro e de cá saio no dia 23 de Fevereiro.
Neste mês vi pessoas que parece terem descoberto recentemente o princípio da legalidade e que, ao mesmo tempo, insurgiram-se contra uma “verdade” que apelidaram de formal mal a sindicância dos requisitos legais de forma se tornou um óbice a determinados intentos.
Vi recém aprendizes do princípio da proporcionalidade, muitos que apenas o sabem nominativamente invocar e ainda nem imaginam a densidade, complexidade e profundidade que esse princípio encerra, a concluir que o interesse público do conhecimento das “escutas” deve prevalecer sobre o interesse privado e individual dos “escutados”.
Li quem distinguiu o desconhecido interesse público da consabida privacidade, como se houvesse certeza dogmática, como se todos não soubéssemos o que ambos são na mesma medida em que também não há consenso.
Vi o “diz que disse no restaurante tal” quase a ser objecto de uma coluna séria de análise política e, como não o foi, vi o seu autor “pintar a manta” na Comissão Parlamentar de Ética, em plena Assembleia da República e na cara dos deputados.
Ouvi os anúncios da divulgação das escutas de uns e de outros, mas depois percebi que as escutas esfumaram-se nos comentários, nas anotações e nas legendas.
Li que “miúdos” que ganham milhões pagos por nós para fazerem com o nosso dinheiro sabe Deus o quê gastaram os nossos parcos Euros para saneamentos numa televisão privada e, quando o conseguiram, deitaram “fogo de artifício” (“fogo-preso!”) ao telemóvel.
Li que os mesmos e outros “miúdos” vociferaram ao telemóvel, parece que jocosa e alarvemente, milionários contratos publicitários misturados com subsídios de desemprego, uns e outros pagos por nós, e seguem governando-nos.
Vi entrevistas em que o vedetismo do entrevistador era tal que a sua opinião se sobrepunha à do entrevistado, em que se pedia explicitações sobre a fundamentação de decisões judiciais mas se interrompia e confrontava amiúde com a opinião contrária, a do senso comum, como se se pedisse ao mais alto magistrado judicial do Estado que fundamentasse as suas decisões, não em termos de Direito, mas de senso comum.
Li, muitas vezes com deleite mas sempre com humildade didáctica, os mais finos rendilhados jurídicos sobre a validade ou invalidade das “escutas”, das casuais e das determinadas, sobre a legitimidade, a licitude e a competência, sobre a unicidade ou multiplicidade de processos, sobre a obrigatoriedade de abertura de inquérito ou a adequação de autuação administrativa, sobre os despachos, a sua feitura, remessa, envio e transporte, sobre a recepção, registo, tramitação, sobre tudo.
Vi os mais altos representantes do povo albergarem-se em decisões judiciais decerto justas mas revogadas por outras igualmente justas de instâncias judiciais superiores, camuflarem-se no cenário da suspeita gerada, municiarem o seu discurso com a palavra “mentira” e dispararem à queima-roupa nas suas locuções.
Vi, ouvi e li isto tudo em 29 dias e preciso de voltar rápida e sumariamente a terreno sólido.
1. O direito à privacidade nas telecomunicações é um direito fundamental fundador da carta dos direitos, liberdades e garantias, imposto a todos, cujos conteúdo, significado e efectividade requerem maior protecção com a crescente capacidade tecnológica.
2. A restrição dos direitos fundamentais para efeitos criminais tem consagração constitucional expressa e qualquer restrição só pode acontecer nos casos previstos na lei formal.
3. As leis penais e processuais penais são o ultimo ratio do ordenamento jurídico do Estado e vinculam os operadores com os princípios da legalidade, da tipicidade, da taxatividade dos elementos-tipo das suas normas, da não retroactividade, da presunção de inocência, da intervenção mínima, da proporcionalidade e proibição do excesso, entre tantos outros.
4. As leis processuais penais e os requisitos de forma são garantias de legitimidade dos meios e das provas e são exigências incontornáveis para a admissibilidade da validade intrínseca dos factos sob apuramento.
6. Não existe previsão legal para a restrição do direito à privacidade nas telecomunicações em favor de um superior interesse público que lhe deva prevalecer.
7. Escutas que não tenham sido ordenadas ou executadas com estrito respeito pelos comandos legais penais e processuais penais (ou noutra legislação avulsa), ou cuja gravação regularmente ordenada tenha sido revogada por decisão de instância judicial superior, não apenas são nulas e realmente devem ser destruídas, mas devem tornar-se inexistentes, cuja divulgação é proibida mas também é proibida a tomada do seu conhecimento.
8. A gravação de telecomunicações para fins de publicidade da actividade política e transparência administrativa são ilegais, inconstitucionais e ilegítimas. Do mesmo modo o são para fins de concretização do direito à informação de todos e da liberdade de imprensa.
9. O sistema judicial tem o dever de preservar e garantir a inacessibilidade às gravações decretadas nulas ou inaproveitáveis para fins criminais para que foram efectuadas, mormente tratando-se de comunicações de altos responsáveis do Estado, sendo este o mais ponderoso interesse público que dentro da legalidade deve ser ponderado. Não se pode pedir que o sistema judicial fundamente publicamente as suas decisões para assim se conhecer o que é proibido revelar.
10. A ponderação dos dois direitos fundamentais – direito à privacidade nas telecomunicações de uma pessoa, por um lado, e direito à informação (liberdade e acesso à informação, liberdade de imprensa, participação) de todos, por outro –, à luz da concordância prática e através do princípio da proporcionalidade, é uma ponderação feita em concreto.
11. Em concreto, o direito à informação de todos não seria satisfeito apenas com a restrição do direito à privacidade da pessoa gravada, seria satisfeito também com a cumplicidade e prevaricação do Estado de Direito no cometimento de um crime, nem que fosse, no actual estado do segredo de justiça, o contributo para a violação do segredo de justiça e a negligência do dever de zelo na preservação da informação.
12. Não há diferença entre gravação de telecomunicações e busca domiciliária: aceitar-se-ia que uma intrusão física ilegal no domicílio de alguém pudesse ser meio ou prova admissível para o que quer que fosse? Poderíamos querer saber quem lá estava, e a fazer e a falar o quê, mas tínhamos esse direito? E se houvesse testemunhos e registos do interior do domicílio recolhidos com a intrusão física violadora da privacidade domiciliária, poderíamos exigir o conhecimento para satisfação do interesse público? Qual o limite desta linha de pensamento? A tortura? E porquê? Factos sacados por tortura podem depois ser valorados, só porque são conhecidos e jamais podem ser ignorados?
13. Não é admissível a valorização do direito à informação em termos de sacrificar, não apenas o direito à privacidade da pessoa, não só a contenção e previsibilidade das normas penais e processuais penais, mas ainda a própria juridicidade de actuação do Estado e a confiança na legalidade. A ponderação de um alegado interesse público que surge através de uma actuação ilegal é inaceitável à luz da Lei e do Direito.
14. Negar a juridicidade, retirar a legalidade ao Estado de Direito é um preço alto demais para conhecermos as escutas.
15. O resto parece conversa.
Reposicionei-me: perante todos os que estão no tabuleiro presto homenagem ao Carvalho Araújo: “Jogador, joga os teus ases, mas vê lá o que fazes…”
Reposicionei-me: perante todos os que estão no tabuleiro presto homenagem ao Carvalho Araújo: “Jogador, joga os teus ases, mas vê lá o que fazes…”
Eduardo Carvalho Campos
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