sábado, 20 de fevereiro de 2010

MIGUEL SOUSA TAVARES



Sou um confesso admirador de Miguel Sousa Tavares.
Gosto dos seus livros, das suas crónicas, do seu estilo de fazer jornalismo, da sua isenção.
Separa-nos a opção clubística, mas, que diabo, também ninguém é perfeito.
Vem isto a propósito da sua notável crónica, publicada na página 9 do primeiro caderno da edição de hoje do jornal Expresso, sob o título "O QUE FAZ FALTA", a qual ainda não está disponível na página do Expresso, na Internet, pelo que não poderei reproduzi-la aqui, como gostaria, mas cuja leitura, vivamente, recomendo.
Para vos aguçar o apetite, permito-me transcrever duas breves passagens:

-"Faz falta um sopro de lucidez que varra este país de cima a baixo e nos devolva o bom senso e a esperança".

-"É que o direito á reserva da vida privada, por exemplo, é um conceito objectivo: todos sabemos o que significa. Mas o 'interesse público' é um conceito subjectivo, que varia conforme o regime e as circunstâncias, os hábitos, as modas e o interesse do público".

Na esperança de que estas duas passagens possam constituir um incentivo á leitura integral da crónica, passo a transcrever, uma outra, igualmente excelente, publicada no jornal Expresso da passada semana:

Oito passos em direcção ao fim

1 Para começo de conversa: a liberdade de imprensa não está em perigo em Portugal. Obviamente. Quem o diz, quem organiza petições online e manifs, nunca antes, quando o perigo real existiu, se fez ouvir. Não há um único grande jornalista português que ande por aí aos gritos em defesa da liberdade pretensamente ameaçada. Não conheço ninguém que não diga e não escreva o que quer e que não tenha tribuna para ser escutado. Sim, há, como haverá sempre, os que têm medo, os que hesitam e os que medem as consequências: mas a cobardia individual não é defeito público. Convém, pois, não confundir liberdade com irresponsabilidade, não confundir vaidades individuais, desejos de protagonismo e aproveitamentos políticos com a situação real, como um todo.
2 Mal, muito mal, andou, pois, Paulo Rangel, com aquele seu infeliz, quase ridículo, discurso no Parlamento Europeu, querendo justificar num minuto a ditadura que se viveria em Portugal. Além de mais, para quem queria defender o jornalismo livre, ele cometeu um pecado capital: exagerou, generalizou, mentiu. Fiquei a pensar que, se este é o amigo da liberdade de imprensa, que avancem os inimigos.
(Felizmente para ele, redimiu-se, dois dias depois, com o brilhantíssimo discurso de apresentação da sua candidatura ao PSD. Aposto: estamos perante um próximo primeiro-ministro. Mais cedo do que tarde).
3 Nada, jamais, me fará deixar de lado o nojo que me causa a revelação destas 'verdades' arrancadas à custa da divulgação de conversas telefónicas ou presenciais privadas, do atropelo sem vergonha do segredo de justiça. Aceitando que as escutas sejam necessárias (excepcionalmente e não como regra geral) na investigação de crimes que, de outro modo, não poderiam ser investigados, nunca conseguiria imaginar que, uma vez declaradas sem interesse para a investigação ou mandada arquivar esta, as escutas pudessem cair então no domínio público. Se não aproveitam à justiça, servem então para o voyeurismo jornalístico ou para os julgamentos populares? Por mais incrível que pareça, é esta, por exemplo, a opinião do juiz-conselheiro Eduardo Maia Costa, que sustenta que "tendo sido proferido despacho de arquivamento... o interesse público prevalece", já que as escutas reveladas pelo "Sol" não "contêm nenhum facto que se reporte à vida privada ou íntima de quem quer que seja". Então, o sr. conselheiro acha que a divulgação da correspondência privada - cuja inviolabilidade é garantida pela Constituição - não é, em si mesma, uma violação da privacidade, desde que não contenha passagens sobre sexo, drogas e rock'n'roll? Muito bem: dê-nos a ouvir a gravação das suas conversas ao telefone dos últimos meses - quando não sabia que estava a ser escutado.
4 Já agora, também não consigo resignar-me à confusão instalada sobre o papel dos dirigentes sindicais da magistratura. Não consigo entender que os dirigentes da Associação Sindical dos Juízes e do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público sejam vozes autorizadas para se pronunciarem sobre regras processuais, princípios constitucionais aplicáveis ao processo-crime e até sobre casos concretos em julgamento. Já faltou mais para que, qualquer dia, tenhamos os dirigentes sindicais dos magistrados a ditarem as sentenças que devem ser aplicadas.
5 Eu já vivi isto, eu lembro-me disto. Assim como me lembro de viver sem liberdade de imprensa ou sob a ameaça a ela. A diferença é que, hoje, eu, como qualquer um, digo o que penso, mas não posso impedir que escutem as minhas conversas ao telefone ou num restaurante e que depois elas sejam plasmadas num jornal, para que o pagode se regale. É isso, antes de tudo o resto, que me preocupa. E, preto no branco: no lugar do director do "JN", José Leite Pereira, eu também não teria consentido a publicação da crónica de Mário Crespo. Porque não aceito, como regra deontológica do jornalismo, a publicação de notícias fundadas numa fonte anónima que escutou conversas privadas, mesmo em local público. E porque também não o aceito como regra de educação. Nunca o fiz e nunca o farei - e também o poderia fazer abundantemente. E sinto asco quando vejo o director do "Sol" vir agora revelar o suposto teor de uma conversa com Sócrates, num almoço em que foi como convidado a S. Bento e onde o PM lhe teria feito confidências gravíssimas. Com gente desta não quero almoçar. (Não deixo, aliás, de achar extraordinário que o mesmo "Sol" ande aí a gritar aos quatro ventos que o Governo português quis comprar a sua liberdade, aproveitando as dificuldades financeiras do jornal, quando, tanto quanto sei, eles se abriram, directa ou indirectamente, aos dinheiros do mais corrupto Governo do planeta).
6 Aprendi, de há muito, o essencial: que não há fins que justifiquem meios injustificáveis. Pelo contrário: meios injustificáveis caracterizam os próprios fins - a história de qualquer ditadura o ensina. Mas, dito isto, estou de acordo com Ana Gomes: ultrapassado o asco e o nojo, porque assim tem de ser, resta o conteúdo e, esse, é inquietante.
As escutas reveladas pelo "Sol" confirmam várias coisas sobre as quais aqui tenho escrito abundantemente: a promiscuidade absoluta entre o público e o privado; o papel determinante das empresas públicas ou participadas nessa promiscuidade; e a função moral rastejante desempenhada pelos boys partidários nessas empresas. Nesse aspecto, Sócrates capricha: ninguém tem amigos e protegidos tão pouco recomendáveis como ele. Não são os inimigos que o matam, com esses pode ele bem; são os amigos.
7 Claro que não tenho uma dúvida de que Sócrates engendrou, consentiu ou sabia (a graduação não é indiferente) que a PT queria comprar a TVI - e, parece agora, que pelas piores razões. E também não esqueço que Moniz assinou na altura um comunicado dizendo que a ideia fazia todo o sentido para a TVI (acabando a aceitar uma indemnização da TVI para sair e ir para a Ongoing, que também fazia parte do 'esquema' montado pelos boys). Mas, por muito que procuremos em vão os inocentes desta sórdida história, resta o que está à vista e que, pelo menos para aqueles que tomam banho todos os dias, não tem outra saída: aqueles meninos que Sócrates andou a colocar nas suas golden shares ou nas suas golden opportunities, têm de ser varridos imediatamente, sem apelo nem agravo. É uma questão de higiene pública. Que eles cheguem ao pormenor patético e eloquente de terem como password do computador "Sócrates 2009" é apenas um detalhe enxovalhante, embora revelador de tudo o resto. Mas que se gabem entre eles do seu génio "empresarial" por congeminarem para o 'chefe' serviços que envolvem o compromisso de centenas de milhões de euros dos contribuintes a custear uma manobra de baixa política, isso é insustentável, sob qualquer ponto de vista.
8 E uma palavra final para esse destroço do naufrágio geral, que voga à tona das águas, agarrado a uma bóia de salvação que diz 'procurador-geral da República'. De há muito que, por outras e variadíssimas razões, defendo a gentileza da sua demissão. Na esteira dos seus antecessores, já se sabia que ele nada pode, nada manda e pouco sabe do que se passa na casa que supostamente dirige. Agora, ficou a saber-se que já nem em si próprio manda e que gasta o melhor do seu tempo a redigir comunicados a desmentir e a contradizer os seus próprios e anteriores comunicados. Num dia recebe o encargo solene do ministro da Justiça para apresentar medidas que ponham termo à bandalheira da violação do segredo de justiça e, no dia seguinte, declara no Parlamento que nada há a fazer quanto a isso. Há, sim, dr. Pinto Monteiro: uma reforma na aldeia, a olhar o lume e a assar castanhas.


Texto publicado na edição do Expresso de 13 de Fevereiro de 2010

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