terça-feira, 22 de março de 2011

QUANDO O DESEJO DE PODER FALA MAIS ALTO


À cerca de um mês, quinze dias depois de nos ter brindado com as "Cenas dos próximos capítulos", Miguel Sousa Tavares, revelando a sua agudeza de espírito, veio admitir, a propósito da votação da moção de censura, apresentada pelo Bloco de Esquerda, que o desejo de poder, e a impaciência interna, poderiam levar Passos Coelho a ser tentado a avançar para o derrube do governo.
O tempo encarregar-se-ia de confirmar esse pressentimento, e o líder do PSD, que resistiu, naquela ocasião, prepara-se para o fazer, agora, a propósito do PEC , respondendo aos anseios do seu partido, e do presidente da república, acrescento eu.
Seja como for, porque a lucidez da análise de MST permanece actual, aqui reproduzo esse artigo, que merece ser lido, ou relido, num momento em que a queda do governo parece inevitável.
Convenhamos, ou está tudo louco, ou o desejo de poder tem razões que a razão desconhece.

A emoção da censura

Miguel Sousa Tavares (www.expresso.pt)
0:00 Quinta feira, 17 de Fevereiro de 2011

Tudo o que este ou qualquer outro Governo tem de decidir é onde corta, quanto corta e por quanto tempo corta. Resolvido isso, então, sim, podemos regressar à política. Mas se não resolvermos isso, só um louco é que nos há-de querer governar. Ou um ditador.

Tudo começou com Paulo Portas na noite das eleições presidenciais, afirmando logo que o Governo tinha perdido as presidenciais e era preciso tirar consequências disso. Continuou depois com Jerónimo de Sousa, declarando-se o PCP pronto para apresentar uma moção de censura, ao mesmo tempo que, quadratura do círculo, notificava a direita de que não contasse com o PCP para chegar ao poder. Depois de alguma hesitação, apareceu então Miguel Relvas, actuando presumidamente em representação de Passos Coelho (?), a afirmar que o PSD é que escolheria o "momento oportuno" para derrubar os socialistas. Seguiu-se Cavaco Silva, que nem esperou pela tomada de posse para abrir as hostilidades com o Governo Sócrates, tornando clara a mensagem de que, mesmo que os partidos o poupassem, por ele não haveria tréguas : tinha passado a ser uma questão pessoal. E, enfim, entrou em cena Francisco Louçã: primeiro, demarcou-se da excitação geral, afirmando que uma moção de censura agora não teria efeitos práticos; mas eis que, três dias decorridos, bate toda a concorrência ao sprint e anuncia a sua moção de censura.

"Que Chico Esperto!", comenta o povo na net, "agora vai capitalizar o descontentamento geral contra Sócrates". Pois, talvez sim talvez não, o último a rir, ri melhor. O eleitorado do BE não é igual ao do PCP, que engole qualquer coisa que o Comité Central decida. O do BE, teoricamente, é mais politizado e não vive em 1917: pode ser que lhe agradeçam verem-se livres de Sócrates, poderem vingar-se dos cortes salariais na função pública, do aumento de impostos e contribuições para a segurança social, dos negócios dos boys, dos pequenos-almoços com o Luís Figo, da bebedeira de investimentos públicos a aumentarem a conta da dívida, em benefício de algumas empresas do regime e em prejuízo de todos. Mas também pode acontecer que o eleitorado do BE não encontre resposta convincente à pergunta "derruba-se o Sócrates para chamar o centro-direita?". A menos que se aceite que a estratégia de Louçã seja a mesma do PCP - capitalizar em votos o descontentamento - e que, portanto, para eles quanto pior melhor, a jogada do BE não é isenta de riscos. Para já, é verdade que deixaram os comunistas apeados, na desprestigiante posição de terem de apanhar boleia do BE - coisa que muito gozo deve ter dado aos bloquistas, mas que não diz nada ao país. O que já vai dizer muito ao país é ver na Assembleia a extrema-esquerda e o centro-direita unidos para derrubar os socialistas. E ver o país ficar sem Governo, paralisado durante dois meses, com os partidos envolvidos em nova contenda eleitoral enquanto os credores e os mercados rebentam connosco de vez. Não sei se os portugueses irão achar muita graça à solução encontrada.

Agora, está tudo do lado do PSD. O povo da net também diz que o PSD, na hora da verdade, nunca avançará porque, afinal de contas, a política do PS também é a sua política. Era bom que isso fosse verdade, porque seria sinal de que, ao contrário do que todos temos como certo, o que moveria o PSD não seria o poder, mas sim a execução de políticas em que acredita. Porém, não é verdade: após seis anos afastado do governo, o partido grita por poder, desde Vila Real de Trás-os-Montes até ao Funchal. Essa é a natureza dos chamados 'partidos do arco da governação' e nisso não se distinguem uns dos outros. O poder está ali, agora, pronto a ser colhido: porquê resistir mais?

Todavia, um pouco de cautela, um pouco mais de paciência, não seriam desaconselháveis. Por um lado, porque, se esta é boa altura para derrubar o Governo PS, também é a pior altura para ir para o governo (recordem-se dos timings perfeitos que Cavaco Silva sempre soube escolher para chegar ao poder, fosse como ministro das Finanças, primeiro-ministro ou Presidente). Por outro lado, porque, por boas ou más razões, o derrube de Sócrates, ao abrigo de uma coligação negativa de extremos opostos, iria encontrar a incompreensão de grande parte do sector económico interno, dos nossos principais parceiros comerciais e da Europa política. Depois, porque o PSD não tem programa político pronto para a conjuntura actual, que é de excepção (a última coisa feita é aquele livro do próprio Passos Coelho, escrito antes da crise e propondo umas soluções vagas e tão liberais que deixariam os eleitores de cabelos em pé se fossem agora recuperadas). E porque Passos Coelho não tem, que se conheça, equipa de governo pronta a avançar e totalmente nova em relação àquilo que já se conhece de outros tempos e não se recomenda.

Mais tarde ou mais cedo, como é fatal, Passos Coelho vai ter de avançar - e é para isso, aliás, que ele foi eleito internamente. A questão é saber se o seu timing coincide com o dos outros e também com o desejo ou impaciência internas. Claramente, eu julgo que ele pensa que o momento não é este - agora, que não se conhece ainda o resultado dos primeiros meses de execução do orçamento para se saber se o défice está ou não a ser contido dentro dos limites acordados com o próprio PSD; agora, que está iminente uma decisão sobre a flexibilização e reforço do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, convencendo a srª Merkel a apostar dinheiro na salvação dos países em crise de dívida soberana, a batalha principal de José Sócrates. Derrubar o Governo de Sócrates antes de ter resposta a estas duas incógnitas é também fornecer-lhe trunfos decisivos para a campanha eleitoral que se seguirá. E repito o que já disse: as notícias sobre a irreversível morte política de José Sócrates (a confirmar-se em eleições antes mesmo do Verão), são provavelmente exageradas.

E o país, no meio de tudo isto? Bem, o país não foi, seguramente, aquilo que mais ocupou o espírito de Louçã ao anunciar a sua moção de censura, ou os outros ao ameaçarem fazer o mesmo. O país está numa situação em que o que menos interessa é a cor política ou as ideias políticas de quem governa. Excepto se alguém conseguir propor um programa de governo em que não seja preciso gastar menos do que produzimos nem seja preciso pagar a dívida acumulada por uma geração inteira e iniciada nos governos do professor Cavaco Silva, os problemas imediatos do país estão perfeitamente identificados e só por má-fé podem ser camuflados. Tudo o que este ou qualquer outro governo tem de decidir é onde corta, quanto corta e por quanto tempo corta. Resolvido isso, então, sim, podemos regressar à política. Mas se não resolvermos isso, só um louco é que nos há-de querer governar. Ou um ditador.

Com mais tempo e mais preparação, Passos Coelho pode apresentar um programa político em que resolva fazer uma coisa jamais feita: dizer toda a verdade, confrontar os portugueses com a situação em que estamos e dizer quais são as suas soluções, sem esconder nada de desagradável. Terá de dizer se vai ou não repor os cortes salariais feitos por este Governo; se vai baixar, manter ou subir impostos; se vai facilitar os despedimentos; se vai continuar loucuras como o TGV, o novo aeroporto de Lisboa ou a terceira auto-estrada Porto-Lisboa; se vai meter na ordem os seus regionalistas; se vai exigir a avaliação do mérito em toda a função pública, sem excepções; se vai começar, quando e por onde, o desmantelamento de todos os serviços públicos inúteis e acabar com o financiamento público de tudo e mais alguma coisa; se vai pôr fim aos negócios encostados à sombra do Estado, não apenas nas obras públicas, mas em muitos outros sectores - da saúde e medicamentos aos bombeiros, da cultura às Forças Armadas. Com um programa destes, valia a pena derrubar o Governo. O problema é que dificilmente ganharia as eleições.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia.

Texto publicado na edição do Expresso de 12 de fevereiro de 2011

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