terça-feira, 22 de março de 2011

A PROPÓSITO DA CRISE


Como já aqui escrevi, por diversas vezes, revejo-me em muitas das posições assumidas por Miguel Sousa Tavares.
Asim sendo, e a propósito das mais do que prováveis eleições antecipadas, pareceu-me interessante reproduzir o artigo que publicou, no semanário Expresso, no passado dia 3 de Fevereiro, quando MST, como tantos outros, ainda acreditava que o bom-senso acabaria por imperar...
Aqui fica, pois, esse artigo, sem mais comentários.

Cenas dos próximos capítulos

Miguel Sousa Tavares (www.expresso.pt)
0:00 Quinta feira, 3 de Fevereiro de 2011

Irá Cavaco Silva derrubar o Governo de José Sócrates na primeira oportunidade que tiver? Resposta: só se não puder.

Irá Cavaco Silva derrubar o Governo de José Sócrates na primeira oportunidade que tiver? Resposta: só se não puder. Bem podem os seus próximos jurar que ele é um homem (não se pode dizer um político, que o ofende) que, acima de tudo, valoriza a estabilidade e cultiva a prudência: era, talvez. A partir do 'discurso de vitória' de domingo passado, esse diáfano Cavaco Silva deixou de existir, à vista de todos, substituído por outro que fará do rancor e do desejo de vingança a agenda principal do seu anunciado "mandato actuante". Oiçam os 'politólogos', que têm o mérito de dizer sempre evidências: todos concordam que aquele discurso não foi apenas um grito de alma, entre a indignação e o desabafo pela honra ferida. Cavaco jamais perdoará o caso BPN e o caso da urbanização da Coelha. Irá certamente vingar-se, assim como Sócrates se vingou da "conspiração das escutas", montada por Belém e também em tempo de eleições. Ele convidou os "senhores jornalistas" a investigarem quem passou as informações sobre o BPN e sobre a vivenda Gaivota Azul cá para fora. Não há nada para investigar: a história da permuta das casas algarvias esclarecia-se com uma simples consulta à Conservatória e notários locais, como foi feito; e a história das acções do BPN, foi, obviamente, passada pelo Governo. O que se estranha é que, após mais de vinte anos na vida e na intriga política activa, este 'não-político" pareça não perceber que os jornalistas podem investigar tudo e não apenas o que lhe convém. E que não tenha percebido que a vingança, se nem sempre é certa na vida, é infalível na política. Cavaco provou do veneno que irresponsavelmente experimentou contra o Governo, no Verão de 2009 - e não gostou. É certo que não dispõe de grandes poderes institucionais e constitucionais para determinar o destino do país. Mas dispõe dos poderes políticos suficientes para ensaiar uma réplica nesta guerra subterrânea contra Sócrates. Estamos metidos num sarilho.

Acontece que José Sócrates tem sete vidas políticas e não consta que já estejam todas esgotadas: as notícias da sua próxima morte política parecem-me exageradas. Paulo Portas ainda não o percebeu, Passos Coelho sim (embora talvez em minoria dentro do seu partido). Além de mais, Portas acha que Cavaco já esqueceu e já lhe perdoou o passado, mas está enganado: Cavaco não esquece nem perdoa, nunca tem dúvidas e raramente se engana. Mudou tanto de opinião sobre Portas como Portas mudou sobre ele: ou seja, nada. O que fará Cavaco partir para a anunciada vingança sobre Sócrates tem muito pouco a ver com os desejos e a impaciência de Paulo Portas. Excluindo a hipótese de um consenso entre a oposição de direita e de esquerda para derrubar o Governo no Parlamento, Cavaco só avançará se o PSD quiser e se, coincidentemente, as sondagens lhe forem favoráveis e apontarem para uma maioria absoluta de direita, sem margem para erro. Caso contrário, corre o risco do pior cenário que pode acontecer a um Presidente: o efeito boomerang da 'bomba atómica'. Como acima disse, Cavaco Silva só não se vingará de José Sócrates se não puder. Mas para poder fazê-lo terá de acautelar muito bem os riscos da operação, sob pena de se enfiar e de nos enfiar a todos num beco sem saída. Imagine-se que, convocadas as eleições, Sócrates ganhava, ou que ganhava a direita, pré ou pós-coligada, mas sem maioria absoluta? Teríamos apenas mudado de governo minoritário, mas com uma diferença fundamental: um governo minoritário em que toda a oposição estaria de um lado do espectro político, não lhe permitindo, como permite ao actual Governo, negociar pontualmente à esquerda ou à direita. Um tal governo não teria esperança alguma de vida e só viria agravar o estado das coisas. Os portugueses, obviamente, não deixariam de responsabilizar o Presidente pela 'solução encontrada' e só restaria a Cavaco Silva uma saída digna, que era a renúncia. Em vez de se vingar, teria dado um tiro no pé.

Passos Coelho não tem pressa em proporcionar o pretexto ao Presidente, e eu compreendo-o. Primeiro que tudo, está consciente de que a vitória de Cavaco Silva não lhe consente tanta jactância como a exibida no discurso de domingo passado. Facto é que, da primeira para a segunda eleição, Cavaco Silva perdeu meio milhão de votos e, dêem-se todas as justificações lógicas que se derem, meio milhão de votos é uma grande facada no 'cavaquistão': o suficiente para lembrar que só um em cada quatro portugueses escolheu pessoalmente este Presidente. Segundo, Passos Coelho sabe que, por mais contas a ajustar que tenham com José Sócrates, os portugueses não trocarão Sócrates por Passos Coelho, Teixeira dos Santos por Catroga ou Silva Pereira por Miguel Relvas apenas para ajustarem contas. Na hora do aperto que vivemos, só o farão depois de verem outros nomes e nova equipa pronta a avançar e que dê garantias de fazer melhor, e, sobretudo, depois de verem que propostas e políticas alternativas são essas que nos tirarão do sufoco financeiro do Estado e reporão tudo o que Sócrates tirou a cada um, nos salários, nas prestações sociais, no aumento de impostos. E, terceiro, Passos Coelho já deve ter percebido que não basta uma nova maioria e uma nova orientação política e económica para fazer desaparecer, como que por magia, a tempestade em que estamos metidos e que em muito ultrapassa a nossa capacidade de resolvermos sozinhos o problema. Não há varinha mágica e os portugueses já o entenderam. A única vantagem do aperto é a consciência, que finalmente vai abrindo caminho, de que as coisas são como são: fizemos a festa e agora temos de pagar a conta e aprender a mudar de vida. Com este ou com qualquer outro governo, faça sol, chuva ou nevoeiro.

Passos Coelho não avançará, pois, por pressão de Cavaco ou de Paulo Portas. Só avançará quando e se Sócrates implodir ou desistir ou se estiver seguro de que disporá do apoio popular, dos meios e de uma estratégia para fazer melhor. Não se mexerá por empurrão, nem do próprio PSD. E se Cavaco lhe quiser dar um presente envenenado e não desejado, pode ser que haja uma surpresa.

Assim, e como o próprio Passos Coelho diz, o desfecho próximo está nas mãos do Governo. Navegando à vista, Sócrates terá, obviamente, de se deixar de disparates mirabolantes, como aeroportos, TGV ou mais PPP. A evolução da execução orçamental, dos juros da dívida, da situação económica, do desemprego e do clima social, serão escrutinados ao mês e à semana. Mas se pelo menos uma das sete vidas de José Sócrates ainda estiver activa, se não cometer mais asneiras e se parar com aquele optimismo militante que irrita tanta gente, pode ser que siga flutuando, até sabe-se lá onde.

Mas, se isso acontecer, se for acontecendo, resta outro factor de imprevisibilidade: o que fará Cavaco Silva. Se não encontrar, nem no respaldo das sondagens ou da rua nem na vontade das oposições um clima propício à consumação dos seus desejos não ocultos, virar-se-á então para a tal "magistratura actuante"? E se esta for, como se indicia, apenas uma promessa de ir infernizando a vida do Governo de Sócrates, será que isso pagará dividendos a favor do Presidente e contra o PM?

Tudo ponderado, este é, por ora, o cenário mais provável: Sócrates vai-se aguentando, Cavaco vai-lhe fazendo toda a obstrução que puder, Portas vai-se impacientando e Passos Coelho vai-se resguardando de guerrilhas alheias e esperando o tempo certo, seja ele quando for.

Nota: Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Texto publicado na edição do Expresso de 29 de janeiro de 2011

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