terça-feira, 4 de agosto de 2009

O MEU AVÔ CHICO



O meu avô Chico, pai do meu pai, era um homem forte, austero, mas com um coração enorme e uma grande paixão pelo seu primeiro neto, que era eu.
Fazia, e reparava, barcos, trabalhando a madeira como poucos, (lembro-me de ir ver uma "chata", de nome Joaninha, por ele contruída, ser lançada ao Tejo), sendo conhecido na Bica, onde morava, na Calçada da Bica Grande 22 1º, como "Mestre Chico" ou "Chico Taré", alcunha cujo motivo nunca consegui apurar.
Passava grande parte do seu tempo livre entre o jardim de São Paulo e o Clube Naval, onde comecei a aprender a remar, no tanque preparado para o efeito, e recordo os primeiros mergulhos, no tanque/piscina, com uns calções de banho amarelos, que minha mãe me ofereceu...
Eu teria uns cinco, seis anos, e o meu avô gostava de me levar com ele, sempre que podia.
Meus pais, numa época em que o dinheiro não abundava, bem pelo contrário, aproveitavam para passar, regularmente, algum tempo em casa de meus avós, que era uma forma de pouparem algum dinheiro, deduzi eu mais tarde...
Para mim, era um divertimento, sobretudo quando a estadia coincidia com a época dos santos populares.
A Bica engalanada, os balões multicores, os arcos coloridos unindo as varandas, as colchas nas janelas, e as marchas, a excitação que sempre provocava a Marcha da Bica, ensaiada e dirigida por esse grande Homem, e Amigo da família, Manuel Machado.
Sempre ganhava uns trocados, com um santinho na mão, pedindo "um tostãozinho para o Santo António", os quais eram, rápidamente, convertidos em rebuçados, com "cromos" para a minha colecção de jogadores de futebol.
Pena que "o mais custoso" estava sempre "no fundo da lata", pelo que o "investimento", necessário para ganhar a tão ambicionada bola de couro, era avultado...
Meu avô adorava a minha presença e eu deliciava-me com os seus mimos e atenções, e quando meus pais começaram a melhorar a sua vida, com a entrada do meu pai no BPA, deixando de aparecer, com tanta frequência, em sua casa, meu avô passou a visitar-nos, em Mem-Martins, onde morávamos.
Chegava de manhã cedo, apanhando o primeiro comboio, então ainda a carvão, na estação do Rossio, levando consigo, invariávelmente, peixes e mariscos, que cozinharia depois de lavados, com a minha "ajuda", na água fresca do poço do meu quintal.
Era um cozinheiro "e peras", sempre de chapéu na cabeça, "para não caírem cabelos na comida", que não deixava entrar ninguém na cozinha, enquanto preparava o petisco, abrindo, lógicamente, uma excepção para o neto mais velho e para o Tio Joaquim, um marujo da Bica, que frequentava o Marítimo, por quem tinha grande amizade, e que o acompanhava algumas vezes.
Ainda me lembro da alegria que me despertava a sua chegada, quando batia com os nós dos dedos, com estrondo, nas portadas de madeira das janelas, ao mesmo tempo que dizia, bem alto, "Toca a acordar, que são horas!", dando início a um reboliço enorme, que a sua presença sempre causava.
Os favores que fazia aos pescadores do Tejo, que a ele recorriam para conseguirem uma rápida reparação da sua "chata", e pelos quais nunca cobrava o que quer que fosse, traduzia-se numa enorme abundância de peixes, e mariscos, em casa, a qual explica a minha enorme preferência por peixe, na minha dieta alimentar.
Com ele vivi momentos inesquecíveis, como "ir á apanha" do berbigão e da ameijoa, com saída da doca de Faro, num barco a remos, ou ficar numa mesa, apenas nós dois, no casamento da minha tia Joaninha, comendo lagosta, que ele retirara, antecipadamente, da mesa principal, "para comer com o neto".
As suas última férias passámo-las juntos, na casa que os meus tios Zeca e Ilídia, tinham alugado em Albufeira, na falésia, com um enorme pátio e uma soberba vista para o mar.
Nesse ano aprendi, com meu avô, como se processava o funcionamento da lota, com a contagem descendente dos preços e um "xui" para arrematar o lote. E vi, pela primeira vez, o nascer do sol, sentado na praia, com meu avô e meus tios, comendo umas deliciosas uvas brancas, que minha tia comprara para a ocasião...
Tinha eu 8 anos e prometeu-me que me ofereceria um barco á vela, feito por ele, no dia em que eu fizesse 14, e estou certo de que teria cumprido a sua promessa, se a Vida, e os médicos, o tivessem permitido...
Infelizmente, viria a falecer nesse ano, na sequência de uma operação á visícula, que até tinha corrido bem, mas o médico achou que não era preciso colocar um dreno...
A última vez que o vi, no hospital, já depois da operação, estava com um pijama ás riscas, parecia recuperado, e projectava a próxima "patuscada" em minha casa, quando da sua saída.
Viria a morrer nessa noite...
Ontem, como hoje, os "erros médicos" deixam as suas marcas, seja a cegueira, como nos recentes casos do Hospital de Santa Maria, seja a morte prematura, como no caso do meu avô.
Nenhum seguro contra esse tipo de erros pode, alguma vez, reparar a perda, mas a sua responsabilização criminal ajudaria, por certo, a reduzir o número de erros, ou "acidentes", como lhe preferirem chamar...
Mas, infelizmente, ontem, como hoje, quando se trata de erro médico, a culpa tende, sempre, a morrer solteira...

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