terça-feira, 16 de novembro de 2010

UM ARTIGO A NÃO PERDER...


Como já aqui afirmei, por diversas vezes, sou um confesso admirador da escrita de Miguel Sousa Tavares.
Pela sua actualidade e importância, permito-me transcrever o artigo publicado no Semanário Expresso, do passado dia 6 de Novembro, sem mais comentários...

Chega de ilusões e de tremendismo!

Miguel Sousa Tavares (www.expresso.pt)
0:00 Quinta feira, 11 de Novembro de 2010
Uma crise é sempre uma grande oportunidade para aprender lições: não interessa vencê-la se não aprendermos nada e logo voltarmos a cair noutra

Na vida das nações, como na vida das pessoas, as emergências têm de ser resolvidas segundo uma ordem eficaz de prioridades. Nós estamos numa emergência e a prioridade agora não é chorar sobre o leite derramado nem sequer entrar no jogo das culpas. De há uns vinte anos para cá, todos os governos têm culpas e quase todos nós também temos. Começa a ser cansativo ouvir agora tantos economistas - que, com raras excepções, estiveram calados vendo o monstro do despesismo e da dívida pública a acumular-se - a prometerem nada mais do que infinitos cenários de catástrofe. E chega a ser penoso ver o Presidente da República - depois de cinco anos de confortável acomodação, interrompida apenas esporadicamente por oblíquos avisos sotto voce - agora desabafar no Twitter ou no Facebook, como qualquer blogger desses que botam abaixo tudo o que vêem pela frente. Se há coisa que agora me irrita mais do que tudo são estas autodeclaradas virgens da política, fingindo que nestes vinte anos não estiveram lá, não tiveram responsabilidades nenhumas, não se confundem com 'eles'.

Não: queremos e precisamos de mais e melhor do que isso. Queremos atacar a crise e vencê-la, não baixar os braços, sem chegar a ir à luta. No meio do pessimismo, da descrença e das recriminações mútuas em que temos vivido nos últimos meses, existe ainda outro país, que trabalha, investe, cria, inventa, renova e não baixa os braços. Um país que ainda conta com trabalhadores que têm orgulho em trabalhar e não em meter baixa ou instalar-se no subsídio de desemprego; um país que ainda tem investigadores que apostam em ficar cá, músicos, arquitectos, artistas, que querem subir por si e não pela via dos subsídios; um país que ainda tem empresários que gostam do risco e investem o seu dinheiro e criam riqueza, não se limitando a aproveitar a crise para despedir e aumentar facilmente os lucros ou continuar a viver à conta e na expectativa dos contratos com o Estado, obtidos com caixas de robalos ou 'almoços de trabalho'. Esse Portugal - se o deixarem, se o não esmagarem com burocracias, indiferenças, desconfianças e todas as outras artimanhas com que desde sempre a mediocridade tentou minar o mérito - é o que nos vai tirar daqui, deste buraco, e devolver-nos a esperança perdida e o orgulho de que há muito abdicámos.

Mas as coisas têm prioridades. Nós vivemos à conta há tempo de mais, e um povo sério não gosta de viver à conta. Criámos um país de 'direitos adquiridos', onde todos se acham com direitos e ninguém reconhece deveres. Para satisfazer essa indolência moral, criámos um Estado que a todos acorre, tudo garante e tudo paga. Esse Estado, obviamente, não é sustentável nem é eticamente justo. Agora sabêmo-lo, ninguém de boa-fé pode dizer que não sabe. Agora, chegou a conta do merceeiro, a quem há anos pedimos fiado, e não há dinheiro para a pagar. Como não há dinheiro, como não produzimos o suficiente para pagar as contas do que gastamos, a solução é a clássica armadilha de pedir dinheiro emprestado para pagar dinheiro emprestado. Só que os juros são cada vez mais caros e a dívida vai aumentando todos os meses - até chegar ao ponto, a que já chegámos, em que parte substancial da riqueza produzida serve apenas para pagar juros... e manter a dívida. Não restam muitas dúvidas de que José Sócrates tem razão quando diz que não há razões económicas que justifiquem a dimensão da chamada crise da dívida soberana entre o clube dos PIGS da Europa, de que temos a desdita e a vergonha de fazer parte. É evidente que os celebérrimos 'mercados' são apenas um bando de abutres especuladores, contra o euro ou contra países vulneráveis escolhidos a dedo, que tiram todo o partido que podem da situação. É evidente que, quando tudo isto estiver resolvido, de uma forma ou de outra, o mundo vai ter de encontrar medidas para pôr termo a esse poder sinistro dos especuladores financeiros (que nos lançaram na crise e se aproveitam dela), que roubam o trabalho das pessoas, a poupança das famílias, a riqueza das nações. Ou o fará ou o capitalismo - tal como o conhecemos, fundado nas leis de 'verdade' do mercado - tem os dias contados.

Mas isso não invalida que nos tenhamos posto a jeito, e é sabido que os abutres só atacam os animais doentes ou mortos. A Espanha deixou crescer um cancro corrosivo formado pela especulação imobiliária, que só podia acabar mal; a Irlanda alavancou todo o seu tão apregoado milagre económico num sector financeiro cujos lucros sempre crescentes não tinham sustentação no crescimento real da economia e, quando estoirou, foi a economia que teve de pagar os crimes da finança; a Grécia capitulou perante as reivindicações incomportáveis dos sindicatos e, para as acomodar, pura e simplesmente falsificou as contas públicas para enganar a Europa, gastando o que não tinha; e Portugal deixou que a sua antiquíssima crença na omnipresença e omnipotência do Estado criasse uma clientela de dependentes incomportável e sugadora de metade da riqueza do país.

Foi isso que nos trouxe até aqui e é por isso que, neste momento, não havia alternativa senão engolir um orçamento de que ninguém pode gostar e que todos sabem que, se correr bem no seu objectivo único - controlar o descontrolo do défice - vai adiar outra vez e por mais uns largos anos a nossa eternamente adiada aposta num desenvolvimento económico a nível europeu. Mas, como explicou Manuela Ferreira Leite, melhor do que todos, não havia alternativa: era isso ou a falência a curto prazo. Há quem defenda antes a falência e há quem não queira saber do simples facto de todas as semanas termos de pedir dinheiro emprestado para continuarmos a funcionar: pode ser que a justificação tenha algum sentido racional ou económico (que não ideológico), mas ainda ninguém o demonstrou. Ainda ninguém nos disse como seria a alternativa - para o Estado, para as empresas, para as famílias - se, para o ano que vem, em lugar de um défice de 4,6% previsto neste orçamento, continuássemos a manter um défice real de 8%, como neste desgraçado ano que nunca mais acaba.

Portanto, a ordem das prioridades é esta: descer o défice em 2011, em 2012, em 2013 e até quando for preciso, para atingir, não os 3% de Maastricht, mas os 0% - ou seja, até atingirmos o ponto em que viveremos apenas com aquilo que temos; depois, começarmos a pagar a dívida acumulada, a factura das PPP, tudo o que levianamente andámos a chutar para as gerações seguintes; e, finalmente, começar a desmantelar tudo o que há de supérfluo, de inútil e de irresponsável financeiramente no Estado que construímos, para que o país seja sustentável, para que desçam os impostos e se possa premiar quem merece, salvaguardando o 'Estado social' para os que verdadeiramente necessitam e o justificam e que temos capacidade de pagar sem matar a economia. A seguir a isso, e se houver interesse em tal, os 'politólogos' ou os historiadores vão ter farta matéria de estudo para apurarem ao certo quem, quando e como foi responsável por estes anos perdidos, todas estas oportunidades desperdiçadas, tanto dinheiro mal gasto.

Mas, para já, só nos resta sobreviver e aprender a lição. Uma crise é sempre uma grande oportunidade para aprender lições: não interessa vencê-la se não aprendermos nada e logo voltarmos a cair noutra. E só há uma maneira de o fazermos: falar verdade, falar toda a verdade. Dizer o que muitos não gostam que seja dito e o que outros têm medo de dizer. O tempo das promessas impossíveis já lá vai.



Nota: Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Texto publicado na edição do Expresso de 6 de novembro de 2010

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